segunda-feira, 30 de março de 2009

Sobre Cotas - Samba, textos e resposta a Peter Fry.

Samba, textos e resposta a Peter Fry.

Logo depois de terminar este artigo, no sábado, dia 25 de novembro, estava voltando para minha casa em Santa Teresa, de carro, acompanhado por um amigo negro, quando vi no retrovisor um carro com um único farol muito alto. Tapei o espelho retrovisor para proteger os meus olhos. Após alguns minutos o tal carro acendeu luzes vermelhas que piscavam no seu teto. Polícia! Fui mais devagar para que ele pudesse me ultrapassar. Mas não ultrapassou. Parou ao meu lado e me forçou a parar. Saltaram de um Opala velho dois policiais armados com revólveres, que logo começaram a me xingar por não ter parado. Com arrogância e brutalidade exigiram nossos documentos e vistoriaram o carro. Minhas tentativas de exigir civilidade apenas aumentaram a agressividade deles. Quando nada ilegal acharam (tomei o cuidado de seguir seus passos caso quisessem “depositar” algo), relutantemente nos deram autorização para seguir viagem. Anotei o número do Opala. Os policiais então anotaram a placa do meu e ameaçaram me multar por ter recusado parar! Cheio de raiva, desci de novo para a cidade. No caminho, sugeri ao meu amigo que era um caso de racismo. Ele disse que não queria comentar isso, mas que era mesmo. Ele teria visto o Opala quando passamos por ele na subida. Certamente os policiais deduziram que um “branco” e um “negro” no mesmo carro só poderiam ser “bandidos” de um tipo ou outro. Fiquei arrasado por ter escrito um artigo apelando para a “realidade” da democracia racial! De volta à cidade, entramos num botequim, um botequim cheio de gente de todas as “aparências” possíveis, velhos e moços, mulheres e homens, de todas as cores possíveis. O ambiente de convivência bem humorada foi o mais perfeito antídoto à batida policial. Aos poucos fui relaxando. Um negro velho veio me pedir um real “para o ônibus”. Espontaneamente começou a me contar da sua vida de capoeirista com a navalha escondida entre os dedos do pé. Ato contínuo, se referiu a sua cor, dizendo que não tolera quem o “desfaz”. Partiu, então, para um longo discurso, sem pieguice, sobre a igualdade de nós todos perante Deus. Dei-me conta, então, de que meu artigo tinha algum sentido. Os dois eventos, a brutalidade da polícia racista e a civilidade da “mistureba” do botequim, aconteceram na mesma cidade com a diferença de alguns minutos entre um e outro. Mas é isso mesmo. O ideal da democracia racial e a brutalidade do racismo coexistem de tal forma que é a situação - umas são previsíveis, outras não - que determina qual vai prevalecer. Não tenho dúvidas de que os dois policiais, ambos “escuros,” jamais admitiriam qualquer racismo. Não duvido tampouco que bebam fraternalmente nos botequins da vida.”
Peter Fry em POST SCRIPTUM do artigo “A cinderela negra”.



Samba, textos e resposta a Peter Fry.

Ontem depois de ler todos os textos e pensar muito sobre eles achei que eu estava mergulhada demais no assunto das relações raciais, e já estava me sentindo um pouco monotemática nas conversas e pensamentos. Resolvi então, ir tomar uma cerveja com um amigo no Samba da Praça Roosvelt no centro da cidade. Quando eu cheguei lá a cena descrita por Peter Fry sobre o Botequim da Lapa se repetia: conviviam lá, pessoas de todas as aparências bebendo e cantando juntas ... Difícil é não se seduzir por esta linda cena e pensar que realmente estamos em um paraíso tropical de igualdade racial, no entanto basta os sentidos ficarem mais aguçados por mais de 10 segundos que pude ver e pensar um pouco mais além. A primeira cena que quebrava a teoria de Peter Fry aconteceu comigo. Encostei-me ao balcão para pedir uma cerveja e do meu lado estava um rapaz negro que veio me “xavecar”, ele encostou do meu lado e falou :
----Ahhh, se eu pudesse eu casava! Mas eu não posso, sou só um pretinho feio.
Eu que ainda estava com todos os textos em mente, quase quis sair de lá e ir correndo escrever um artigo resposta ao Peter Fry perguntando: porque será que todos tomam cerveja juntos, mas, no entanto, o rapaz negro acha que uma branca que freqüenta o mesmo lugar que ele esta em uma posição de superioridade a dele apenas por ser branca ? Será que este rapaz falaria a mesma coisa para uma mulher negra? Porque a frase dele já começa com uma negativa? Seria a branca algo inalcançável em uma relação tão hierárquica que conquista-la seria um premio?
Aqui, é importante ressaltar que um dos argumentos que Peter Fry desenvolve nos textos é que no Brasil há uma brasilianidade ligada a uma cultura nacional que advém de uma mistura de diversas culturas e cores, desta forma a classificação das camadas populares é feita por um sistema múltiplo e pelo continuum de cor. Neste sentido me restou uma duvida: Como que ele mesmo faz para nomear em seu relato sobre o episódio da policia e do botequim o seu amigo e o velho de “negros”? Como que o rapaz do bar ao meu lado sabia que ele é negro e eu branca? Não é a categoria raça que esta sendo atualizada nos dois casos? Não é também a categoria de raça que faz com que o rapaz pense ser impossível casar com a Branca? Peter Fry argumenta que o tipo múltiplo de classificação possibilita a “dês-racialização” da identidade individual. Neste caso, me pergunto, se mesmo que o amigo que estava sentado ao lado dele no carro se considerasse “moreno” e isto fizesse que ele não atribuísse a sua identidade pessoal o estigma da racialização isto serviria para que a policia não suspeitasse dele ?
Após esta primeira cena, eu mesma tentei me obrigar a parar de pensar neste assunto e ir me divertir, então encontrei um amigo meu moçambicano formado e com mestrado em economia pela USP, logo após nos cumprimentarmos ele disse : Lia, estou indo embora, vou voltar para Moçambique, aqui eu não consigo emprego, aceitam meu currículo, mas nunca passo depois da entrevista! Nesta hora pensei que precisamos dizer ao Peter Fry que além das cotas na universidade precisamos das cotas pós universitárias, em empresas, por exemplo!
Peter Fry, em sua posição contra as cotas, se opõe ao uso da categoria raça, segundo ele, quando o Estado institui raça como critério para a distribuição de direitos, a tendência é de fortalecer a crença em raças e, em conseqüência, o racismo. Pergunto a ele se quando este meu amigo moçambicano[1] não consegue emprego não é a categoria raça que esta sendo utilizada.
Para Fry, em seu argumento contra Guimarães diz que as identidades raciais que são valorizadas pelas ações afirmativas não existem ainda no Brasil (já que há um continuum de cor e a miscigenação é uma realidade que se oporia a estas identidades), e, neste sentido ele argumenta que, para que se possa utilizá-las elas teriam que ser primeiro construídas. Aqui também é possível perguntar: já que elas não existem, com que categoria as pessoas brancas discriminam as pessoas negras ? Ou seja, se o racismo existe no Brasil é exatamente porque a categoria raça esta não só construída como também se atualizando em todos os momentos.
E neste sentido é preciso concordar com Guimarães quando ele aponta em seu texto Democracia Racial que :
“O que continua em jogo, entretanto, é a distância entre discursos e práticas das relações raciais no Brasil, tal como Florestan e Bastide colocavam nos idos anos 1950. Ainda que, certamente, para as ciências sociais, o mito não possa ser pensado da maneira maniqueísta como Freyre e Florestan pensaram, transpondo-o diretamente para a política, permanecem os fatos das desigualdades entre brancos e negros no Brasil, apesar do modo como se classifiquem as pessoas. Mais que isto: as diferenças raciais se impõem à consciência individual e social, contra o conhecimento científico que nega as raças (são como bruxas que teimam em atemorizar, ou como o sol que, sem saber de Copérnico, continua a nascer e a se pôr?)”

Conversando com este amigo meu moçambicano, e ao mesmo tempo em que eu concluía que realmente é a categoria de raça que tem perpassado nos atos racistas dos brasileiros eu olho para o lado e vejo um rapaz branco com uma camiseta escrita: “Samba é cultura popular”. Eu que queria me desvencilhar dos textos lidos, lembrei logo do Renato Ortiz dizendo que o Soul serve melhor para exprimir a angustia e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional (como dizia a camiseta do rapaz), desta forma Ortiz tem razão quando conclui que: “O mito das três raças é neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos se reconhecerem como nacionais”...
E é esta possibilidade de reconhecimento de todos como nacionais que Fry usa como defesa da não polarização entre negros e brancos, pois muitos dos bens culturais importantes como a feijoada, samba, capoeira que poderiam ser pensados como cultura negra são hoje considerados símbolos nacionais, e neste sentido que Fry argumenta que a democracia racial não é apenas um mito, pois, para ele é a ideologia da democracia racial que produz uma realidade a-racista e desta forma não segrega a população. Ou seja, a tese dele é que o mito da democracia racial produz de fato democracias e uma identidade nacional (como o caso da passeata que ele conclui que os entrevistados se sentiram num evento típico nacional-brasileiro). Desta forma se os negros não podem se articular por um eixo identitario cultural, qual categoria que poderia ser usada para a luta destes contra o racismo se não a própria raça?

Bibliografia
Ortiz, Renato. "Memória coletiva e sincretismo científico" e "Da raça à cultura" IN Cultura Brasileira & Identidade Nacional, Ed. Brasiliense, 1985.
Fry, Peter. 2005. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Caps. 6 e 7
[1] O exemplo do Moçambicano pode ser facilmente combatido com o argumento da meritocracia, ou individualismo (com frases do tipo : vai ver que ele não consegue emprego porque não é bom) . Porém os dados de Haselbalg que controlam a categoria classe já mostram que os negros tem muito mais dificuldades no ascensão social que os brancos e também negros aparecem nas pesquisas[1] do IPEA como a população mais excluída no que diz respeito à participação no mercado, e todos os direitos como saúde, educação, acesso à justiça etc.





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