segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Sobre nos odiarem e odiarmos a nós mesmos.


Escrevi este texto com uma tristeza profunda, após ler os comentários da internet no caso da loja que esta ganhando dinheiro com a misoginia.  Ler os comentários me fez voltar a  varias lembranças e todos os momentos em que o meu e os nossos corpos  femininos foram agredidos.
Sou uma mulher que convive com mulheres. Fiz psicologia, curso que na época era praticamente um lugar de/e para mulheres,  tenho uma irmã gêmea, e  juntas sempre fomos rodeadas de mulheres, dividindo casa, dividindo sonhos, dividindo afetos.
  São anos de convívio entre  mulheres, e neste tempo todo consigo lembrar só   uma única coisa que envolva todas nós (com salvas raras exceções)  99%   compartilham o ódio por sí mesmas – as brancas, as negras, as magras, as  com corpo “padrão ISO academia” as com peito as sem peitos etc.
Numa cultura como a nossa faz parte desta constituição odiar parte (as vezes todo) o próprio corpo.  Quando não se odeia o culote, odeia a barriga, quando não é a barriga é o nariz, quando não é o nariz é o cabelo ( este da um texto a parte),  as vezes se odeia tudo, as vezes o formato da unha, as vezes o dedo, as vezes o cheiro... Com este ódio alimentamos uma maquina de produtos cosméticos, salões de beleza ( semanalmente), cirurgiões plásticos e a indústria da moda. Todos estes ganham dinheiro com nosso auto-ódio.
 Infelizmente nunca conheci uma mulher que não se odiasse pelo menos em parte, pelo menos um pouquinho.  É evidente que isto acontece em graus diferentes, tudo seguindo uma hierarquia padrão de beleza moldada por um tipo estético correspondente  as Barbie e estrelas de hollywood.  Neste sentido, imagino que 98% das mulheres da humanidade estão de algum modo fora deste padrão, ou o cabelo não é liso, ou não é magra, ou não tem peitos, ou o nariz não é fino, ou, ou, ou, ou, ou .

Somos atacadas desde sempre pelo corpo, é ele que é diariamente  odiado e colocado para “correção”, as partes deles são destruídas simbolicamente e muitas vezes fisicamente (a maioria dos feminicidios acontecem com ataque violento  a partes do corpo próprio das mulheres - vagina e peitos).   E então, o corpo que até então poderia ser fruto de prazer vira o depositário de todo ódio misógino de nossa cultura.
Na verdade, quando para gostar de uma mulher ela precisa ser esteticamente  “isto ou aquilo”  o que se quer dizer é que não se gosta de mulher.

Podemos também pensar, através da psicanalise, que a violência machista e a misoginia  estabelece por meio destes padrões estéticos determinados  uma relação persecutória entre as mulheres e seus corpos, desmantelando um dos componentes fundamentais para a saúde psíquica e física na construção de suas subjetividades:  a  necessidade que o corpo seja predominantemente vivido e pensado como local e fonte de vida e prazer.
A violência de uma cultura misógina  produz exatamente o oposto, como já apontei a cima:  odiamos nossos corpos. E ao odiarmos nos submetemos a rituais de torturas diários  como a depilação, o alisamento, a restrição alimentar... Assim, obviamente que o lugar que nos seria fonte de prazer, vira fonte de dor.  E depois de tudo isto, aquelas que não conseguem gozar ( porque aprenderam a ter vergonha do corpo) são chamadas de frigidas, frias, recatadas, e as que conseguem e aprenderam sozinhas a se amarem são as nomeadas como puta.
Neste contexto, as vezes é difícil para quem esta fora desta lógica  (que pode andar por ai sem camiseta na rua mesmo que esteja “muito magro” ou “muito gordo” sem que isto signifique nada mais que estar com calor) imaginar de fato o quanto o próprio corpo das mulheres tem sido violentado neste processo de constituição.  As lembranças desde a infância e principalmente na vida adulta de cada uma de nós mulheres deixam evidente que o corpo tal como ele é está interditado de ser significado como belo.  Para umas é preciso embranquecê-lo, para outras “bronzea-los” para outras emagrece-lo, para outras criar músculos, para todas depila-lo, ...  tudo isto por meios de técnicas que vão da violência da faca até a cera quente, pois só   assim pode ser que um corpo cheio de dor  seja minimamente  aceito.
  O ódio a mulher não nos da saída, somos de inicio e por fim odiadas. E quando resolvemos denunciar esta cultura qual o primeiro ataque ? aos nossos corpos.... Por isto e muito mais, é muito triste pensar que este ódio além de alimentar uma indústria pesada de beleza alimenta a opressão simbólica  do homem sobre a mulher,  e de nós por nós mesmas.
Talvez assim fique evidente porque amarmos nossos corpos fora dos padrões seja tão revolucionário, e ainda porque usa-los como mercadoria tão ofensivo.


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Ps1: Ops, pera ai.... se você for assim, assado, se comportar assim ou assado pode ser que não seja odiada ... rs

sábado, 12 de março de 2016

A sociologia é imprescindível para construirmos políticas publicas, mas não para julgarmos o que cada um de nós tem passado nesta vida.


A sociologia é imprescindível para construirmos políticas publicas, mas não para julgarmos o que cada um de nós tem passado nesta vida.

 

Escrevo uma história de uma moça que veio falar comigo depois de uma palestra para falar um pouco sobre algo que há tempos  tenho pensado : A sociologia mecânica dos ativismos faz bem a quêm ?

 

A moça é uma negra de pele muito clara, tem olhos verdes e cabelos ondulados. Sua mãe era negra e morreu quando ela era muito nova. Seu pai descendente de alemão no interior do Rio Grande do Sul levou a filha Joana ( nome fictício) para morar com a família dele. E lá  Joana sofreu o racismo no interior da família, a avó chamava ela de Schwarz ( negro em alemão) e dizia que ela servia para ser a domestica da casa. O avo falava que ela era macaquinha e batia na moça lembrando-a que ela estava apanhando por ser negra. O pai segundo ela não tinha nem força nem estrutura para defende-la. 

 

Enfim a história segue com outras tantas violências que nao vem ao caso. Joana cresceu, estudou, entrou na universidade pública e ali começou a militar. Em diversos espaços quando esta moça falava sobre racismo vivido era zombada por colegas brancos e negros que diziam com estes olhos ?  esta pele ? que racismo ?  Falas que iam deslegitimando toda uma série de experiências violentas subjetivas que marcadores sociológicos nao dão conta de explicar.  

 

Obviamente sabemos como funciona o racismo fenotípico do Brasil  onde quando mais preto menos oportunidades a pessoa têm em diferentes aspectos da vida social. E sim quanto mais claro mais privilégios simbólicos e materiais na estrutura e inserção no mundo social. Contudo, nao é honesto de ninguém pressupor quais foram os encontros de uma pessoa com a violência e muito menos fazer um julgamento rápido do que alguém sofreu ou deixou de sofrer. Ninguém sabe os caminhos por que alguém passou.  

A facilidade com que se julga os outros deveria ser a mesma com que se julga a sí mesmo. Ou seja, quando falamos sobre nós mesmos é evidente que levamos em conta uma quantidade de fatores que vão muito além de determinantes sociológicos que se resumem a classe, raça e gênero. Sim estes são determinantes estruturais de nossa sociedade e dizem muito sobre cada um de nós, contudo nunca deveríamos esquecer que cada sujeito é atravessado por uma série de outros fatores que eu aqui posso enumerar dos mais místicos até os mais objetivos. Mas que em síntese quer dizer que cada um de nós temos identificações estéticas, crenças espirituais, signos, orixás, alma,  histórias de amor e desamor, violências e afetos que ultrapassam os determinantes sociológicos e que também são construtores de toda e qualquer subjetividade. Escrevo isto porque eu trabalho diretamente com diferentes ativismos, o ativismo feminista, o ativismo anti-racista e dos direitos humanos em geral. E diariamente vejo e ouço falas que fazem uma associação mecânica das categorias sociológicas aos sujeitos. Interpretam e julgam o quanto cada um de nós sofreu ou nao sofreu devido a puramente categorias sociológicas.  

Tenho dito que brancos, negros, homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais são todas categorias de construção de classificação e hierarquizações dos sujeitos, mas o mais importante é pensar que estas categorias só existem em relação. E o que isto quer dizer ?  que ninguém, absolutamente ninguém sofre porque é negro. A pessoa sofre pelo encontro, pela relação que se tem diante do racismo. Ninguém sofre por ser mulher, mas sim pelo encontro e relação que estabelece na vida com pessoas mais ou menos machistas e por estarem inseridas em uma sociedade estruturada pelo patriacardo e pelo racismo.  Uma moça negra de pele muito escura em uma família de negros com identidade positivada nascida na  capital da Nigéria possivelmente sofreu menos racismo que Joana.  Por isto sempre bom lembrar que ninguém sofre pela quantidade de melanina na pele e sim pelo modo e pela forma com que se da o encontro com o racismo.  

Fiquemos atentos pois a sociologia é imprescindível para construirmos políticas publicas, mas nao para julgarmos o que cada um de nós tem passado nesta vida.
Beijo em todos.

Lia