Rompendo o pacto racista: colocando o branco em questão
Apresentar os motivos pelos quais escolhi escrever e pensar sobre racismo é, para além de um ato de apresentação aos leitores, um ato político, pois será necessário dizer ao mesmo tempo sobre o processo de como me identifiquei com aqueles que são vítimas do racismo, bem como com aqueles que são protagonistas de atitudes, discursos e subjetividade racista.
A primeira preposição – de identificação com as vítimas do racismo ‑ é muito mais simples de tornar consciente, pois o argumento raciona l, de que sou uma psicóloga social que se preocupa com a luta contra a opressão e subalternização das populações oprimidas por uma sociedade que privilegia uns em detrimentos de outros, basta para me colocar dentro daqueles que se engajam na luta anti-racista. No entanto, hoje em dia, para se realizar uma pesquisa dentro da psicologia social crítica, é condição sine qua non que o investigador saiba o lugar social e subjetivo de onde age, fala, observa e escreve. Assim, sendo eu: mulher, branca, paulista de classe média e descendente de imigrantes judeus, só posso escrever deste lugar, pois acredito que não seja possível transcender a própria identidade, por mais que haja em mim identificações com outras identidades, é deste lugar que eu falo. Desta forma, sendo eu vinda de uma família de esquerda, onde qualquer forma de preconceito e discriminação era totalmente intolerável e automaticamente associada aos horrores da Segunda Guerra Mundial, o tema racismo sempre foi uma preocupação.
Criada nessa tradição de democracia de esquerda, obviamente minha constituição como branca não foi daquela que se opunha aos negros como os “outros” de que se tem ódio, ou então “outros” de que se tem medo. Entretanto,o racismo em que eu fui criada não se dava pelo ódio aos negros, mas tão racista quanto o ódio e o desprezo foi a forma como eu e os brancos de minhas relações sociais representávamos os “outros” negros: com pena, com dó, com ausência Quer dizer, nosso racismo nunca impediu que convivêssemos com os negros ou que tivéssemos relações de amizades e/ou amorosas com eles. No entanto, essas eram sempre relações em que os brancos se sentiam quase como fazendo “caridade” ou “favor” de se relacionar com os negros, como se tivéssemos salvando-os de sua própria negritude, como se com a nossa branquitude fizéssemos um favor de agregar valor aos negros, como se fôssemos bonzinhos e anti-racistas porque, afinal, estávamos permitindo aos negros compartilhar o mundo de “superioridade” branca. Ou seja, mesmo tendo crescido em um ambiente onde a luta contra opressão, discriminação e desigualdades era a pauta de discussões na família, na escola e nas relações de amizade, fui constituída como branca com um sentimento de “superioridade” racial tão maléfico quanto o racismo acrítico daqueles que acham que os negros são inferiores biológica e moralmente.
Assim, quando em uma atitude de auto-reflexão percebi que, mesmo tendo um círculo de relação social com diversos negros, , e com um ideal racional anti-racista, eu continuava sendo racista bem como era protagonista de atitudes racistas, tive um choque emocional que tornou a luta anti-racista minha agenda diária, assim também fui atrás de referências epistemológicas que explicassem o porquê e de que forma eu havia subjetivado o racismo em mim tão profundamente.
Nesse sentido, perguntar quem é o branco e como a idéia de raça, bem como o racismo operam na constituição dessa identidade, é agenda diaria, pois acredito que, , para além de todas as lutas contra a desigualdade racial no campo do mundo do trabalho, mundo jurídico, econômico etc., se há algo que um branco possa fazer pela e para a luta anti-racista é denunciar os privilégios simbólicos e materiais que estão postos nessa identidade.
Dessa forma, quando digo que esta apresentação é também um ato político, a intenção é dizer que me expor como pertencente ao grupo opressor e denunciar o racismo que já foi parte de minha identidade, e que hoje luto conscientemente contra, é romper o silêncio que a psicóloga Maria Aparecida Bento chamou de “pacto narcísico” entre brancos, e que necessariamente se estrutura na negação do racismo e desresponsabilização pela manutenção deste.
3 comentários:
Parabéns Lia pela decisão de se expor.
Como lembra Frankenberg, o anti-racismo branco é uma postura que requer vigilancia pela vida afora.
o processo de conscientização do espaço que se fala é super importante pois nos define nos nossos proprios limites.
compartilho com você dessa luta e dessa pertença
mais uma vez Parabéns!
Eis ai uma postura digna. A luta anti-racista acontece em nossos corpos cotidianamente, e muito bem dito por você. Cá estou eu sempre sendo embranquecido por muitas pessoas pelo fato de ser um estudante de pós-graduação. Fato curioso é que quando as pessoas nada sabem de minha história, como a policia ou seguranças de banco, não tem jeito, aí é a herança africana que permanece e a gente ja sabe o tratamento que sobra, não?
gostei muito do texto.um beijão!
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